9 de maio de 2010

Está aí a Queima!



A Ponte dos Asnos


Nos meus tempos nessa alma mater dolorosa que era e talvez ainda seja a Universidade de Coimbra havia por lá uma coisa chamada "praxe académica". Creio que era no país a única Universidade que conservava e justificava, com base em míticos foros a permanência de semelhante corcunda. A religião praxística tinha a sua "Revelação" imortalizada numa calhamaço chamado Palito Métrico que começava, cito de memória: "Filius ille puta/quod primo versus fecit"... Era a bíblia dos débeis matriculados; nela se consignava o grande dogma, a tautologia "dura praxis sed praxis", espécie de "pons asinorum" (ponte dos asnos), ilógica justificação do injustificável, tal como essa em que se inspira a "dura lex sed lex", aforismo redondo que há mais de dois mil anos se inventou para aporrinhar o juízo e o coiro de quem lhe cai nas unhas da merceeira cega, a justiça, perdão, A JUSTIÇA.

A praxe consistia em humilhar, ofender, rapar e agredir (sim, agredir...) o bicho, o caloiro, o pastrano, o semiputo e afins castas praxísticas, pelo simples motivo de aquelas mentes tíbias terem fabricado, única elocubração de que eram capazes, bichos, caloiros, pastranos e semiputos. A tal praxe era regulada, vigiada e policiada por uns sujeitos bisonhos de incompleto equipamento mental a quem os antipraxistas, como eu, chamavam "tricanos". A palavra, que ouvi pela primeira vez ao Zé Afonso, correspondia à parte macho da mamuda colareja, chaile-traçado & chinela-de-verniz, a tricana do mercado do Calhabé por quem o tricano nutria aquele permanente e jamais concretizado eretismo que era tudo quanto, na sua condição de resfolgante bode de cobrição concebia como erotismo.

A filosofia (?) do praxista era (é) simplista, linear, toda de direita: ele e seus irmãos de matricula eram os "doutores", como de resto qualquer merdas que chegasse à Estação Nova já ajaezado de capa e batina. Ao habitante da cidade, que no entendimento do goliardo não era dotado do átomo de bestunto necessário para escamar o "canudo", chamava ele "futrica", tinha-o por ilota daquela Lusa Antenas onde a Pátria deficitária ia buscar as doutorais luminárias que pontificavam, como hoje, nos púlpitos de onde se governa a Lusitânia.

Quando por lá andei o grande activista da praxe era um tal Diamantino, por alcunha "O Tocha", graveto a rondar o metro e cinquenta, pouco mais, fracachichas mas muito teso quando tinha as costas quentes por uma trupe de dez ou vinte gandulos do mesmo jaez, armados de moca e colher de pau. Uns heróis! O sadismo do "Tocha" tinha uma vinculação cromossomática: o pai, por acaso meu professor na 2ª classe, era uma besta sádica como o crio: punha-se em bicos de pés em cima do estrado para corrigir mais dolorosamente os pequenos energúmenos, os díscolos de metro e dez de altura, vinte e poucos quilos de peso, 7 a 8 anos de idade que nós éramos. Eu, que era muito bom aluno e só medianamente traquina, não me lembro de um dia em que o fideputa ainda por cima membro da União Nacional, não me tenha enchido a marmita. Aproveito a ocasião para, se é que ainda não espichou, daqui lhe desejar uma morte pouco santa e muito lenta.

O "Tocha", os "tochas", eram partícula indistinguível do que era e é a direita, por mais refinamento que os seus próceres ponham na escolha da gravata. Combater a obtusidade dessa gente era para nós, os de fora do rebanho a que por convenção se chamava Movimento Estudantil, tão importante como a grande luta contra o cinzentismo fascista. E de tal modo se lutou que, ao contrário do que corre, quando o 25 de Abril veio, a praxe com a sua bruteza militante já só era uma recordação.

Quem me havia de dizer que passados anos a avantesma havia de crescer e multiplicar-se em inúmeras fotocópias desse "Tocha" a quem um dia um colega, reza a lenda, cuspiu na tromba em plena Baixa... Pior: que uma tradição (?) bronca que só a Coimbra dizia respeito havia de transbordar em tons tão ou mais brutais e ainda mais pirosos, mais falhos de imaginação e de gosto que o modelo original, para tudo quanto é Universidade, Instituto, Escola superior: humilhações, agressões, violências impunes à mistura com "benção das pastas", "garraiada", "cortejo" e outras pimbalhadas do estilo.

O labéu, claro, não é extensivo a todos os estudantes, sequer à sua maioria. O praxista é invariavelmente um sujeito frustrado, crasso, vingativo, (quiçá vítima obtusa e rosnante de alheias e anteriores vinganças...) que faz pagar aos outros as suas insuficiências da única forma que sabe e em direcção ao único objectivo que é capaz de discernir, a única catarse capaz de lhe purgar a bílis goliardesca: a vingança com exercício gratuito da violência.

O pior é que há vítimas desta xaropada sinistra: estudantes traumatizados física e psicologicamente, estudantes incapazes de se concentrarem no trabalho, estudantes que reprovam, estudantes desviados da defesa dos seus interesses como meros cidadãos, sempre por via destes himmlers de comédia suburbana.

Por mim, contra a ilegítima barbárie da "praxis", se não respondem os tribunais, as leis ou as autoridades académicas, ergam-se as vítimas e usem da violência legítima no combate à violência não convocada.

Luís Nogueira

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