A ESPUMA DA NOITE
12 de maio de 2013
1 de julho de 2010
Exorcismo
Amor que desce, amor que nem procura
de um a ser mundo o sopro repetido;
amor em quem não vive o quanto dura,
no morto antes de tempo, o não vivido;
amor, a quem não resta a fonte obscura
daqueles cujo peso foi perdido;
amor que não conhece mais ternura
além da que não quis sangue vertido:
(Anjo que passas no desdém da terra,
que terra não existe em tuas penas?
Que Sol, de iluminá-las tão serenas,
se perderá das órbitas que encerra?)
amor vidente que o olhar tritura;
amor — saudade pura sem sentido.
13 de junho de 2010
Ontem no Brasil comemorou-se o Dia dos Apaixonados
O Beijo - Klimt
A Noite Passada
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste
A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos
A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"
Sérgio Godinho
PARA OS MEUS ALUNOS
Após tantos anos a ver-vos chegar
e a deixar-vos partir
alheios ou inquietos quanto
ao parentesco das ideias e dos actos
o direito às perguntas e a fonte
das perguntas,
gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome,
saber se estive, perto ou longe,
em vossas dúvidas. É sempre
uma questão mútua de ser.
Uma presença e não
um resultado.
Mas nem sempre soubestes que crescíamos
entre ódios, fanatismos, cobardias,
com olhos vendados pelo conforto
e o medo, com ter-se ou não ter-se
vantagens, aplausos, soluções privadas.
E como foi possível ter razão
sem ter as circunstâncias.
Agora os vossos rostos passam, firmes,
entre visão e facto, entre o amor
e a chegada de todos ao amor.
Mas também morro mais depressa agora.
Por isso gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome. E agradecer-vos a herança
da alegria. E dizer uma vez mais que é sempre
uma questão mútua de ser. Uma presença
e não um resultado.
E os vossos rostos todos
hão-de ajudar-me a envelhecer
sem angústia ou vergonha
e a estar convosco na verdade
e a buscá-la juntos e a cumpri-la.
Vítor Matos e Sá
6 de junho de 2010
Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.
A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as saias do pensamento, e vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida.
E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de consciência em que passei a viver o que sentia, tornaram-me mais quotidiana, mais epidémica, mais titilante a maneira como sentia.
Bernardo Soares - Livro do Desassossego
31 de maio de 2010
É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia a dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso
António Ramos Rosa
26 de maio de 2010
25 de maio de 2010
Amor...ou coisa assim
Espera-me um pouco onde não chova,
vou morrer mas tenho tempo, espera-me
nem que seja por delicadeza ou amor
ou coisa assim.
Já fui ver o mar onde a terra começa a ser céu,
já alimentei as aves e os peixes e a nobreza dos gatos,
já trabalhei duro e fundo, já andei no mundo,
agora já não.
Tem paciência comigo, por favor.
Às vezes entristeço como respiro, vou ver as pessoas
e como elas sou pouca gente parda e parada
no Inverno portátil do coração.
Eu tenho uma vocação de ti por natureza,
ainda não tinhas nascido já eu te pertencia,
como às pedras pertenço e à poalha azul do ar,
quando o Verão nos perdoa a submissão.
As coisas principais estão se calhar nos gestos,
não nos livros, não sei, tento saber mas desconhecer
é se calhar a vera missão do coração,
aquele que pensa além do corpo, ante o mar
e a segunda-feira,
dia em que espero que me esperes.
Daniel Abrunheiro
23 de maio de 2010
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão.
O horizonte, que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro café,
em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de Inverno.
E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio.
Então, o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça.
Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que porto?
E que nos espera no regresso ao lugar
de onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?
Nuno Júdice
22 de maio de 2010
O teu corpo. O meu corpo. E em vez dos corpos
Que escorpião de súbito estes corpos
Não indagues agora se o meu corpo
Mas indaga sem pausa além do corpo
David Mourão-Ferreira (1973)
20 de maio de 2010
Demanda
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny de Vasconcelos
17 de maio de 2010
Carta a Ângela
Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.
Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!
Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!
Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e de sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.
Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!
13 de maio de 2010
A Pátria a PB
Daniel Abrunheiro (um génio)
9 de maio de 2010
Está aí a Queima!
A Ponte dos Asnos
Nos meus tempos nessa alma mater dolorosa que era e talvez ainda seja a Universidade de Coimbra havia por lá uma coisa chamada "praxe académica". Creio que era no país a única Universidade que conservava e justificava, com base em míticos foros a permanência de semelhante corcunda. A religião praxística tinha a sua "Revelação" imortalizada numa calhamaço chamado Palito Métrico que começava, cito de memória: "Filius ille puta/quod primo versus fecit"... Era a bíblia dos débeis matriculados; nela se consignava o grande dogma, a tautologia "dura praxis sed praxis", espécie de "pons asinorum" (ponte dos asnos), ilógica justificação do injustificável, tal como essa em que se inspira a "dura lex sed lex", aforismo redondo que há mais de dois mil anos se inventou para aporrinhar o juízo e o coiro de quem lhe cai nas unhas da merceeira cega, a justiça, perdão, A JUSTIÇA.
A praxe consistia em humilhar, ofender, rapar e agredir (sim, agredir...) o bicho, o caloiro, o pastrano, o semiputo e afins castas praxísticas, pelo simples motivo de aquelas mentes tíbias terem fabricado, única elocubração de que eram capazes, bichos, caloiros, pastranos e semiputos. A tal praxe era regulada, vigiada e policiada por uns sujeitos bisonhos de incompleto equipamento mental a quem os antipraxistas, como eu, chamavam "tricanos". A palavra, que ouvi pela primeira vez ao Zé Afonso, correspondia à parte macho da mamuda colareja, chaile-traçado & chinela-de-verniz, a tricana do mercado do Calhabé por quem o tricano nutria aquele permanente e jamais concretizado eretismo que era tudo quanto, na sua condição de resfolgante bode de cobrição concebia como erotismo.
A filosofia (?) do praxista era (é) simplista, linear, toda de direita: ele e seus irmãos de matricula eram os "doutores", como de resto qualquer merdas que chegasse à Estação Nova já ajaezado de capa e batina. Ao habitante da cidade, que no entendimento do goliardo não era dotado do átomo de bestunto necessário para escamar o "canudo", chamava ele "futrica", tinha-o por ilota daquela Lusa Antenas onde a Pátria deficitária ia buscar as doutorais luminárias que pontificavam, como hoje, nos púlpitos de onde se governa a Lusitânia.
Quando por lá andei o grande activista da praxe era um tal Diamantino, por alcunha "O Tocha", graveto a rondar o metro e cinquenta, pouco mais, fracachichas mas muito teso quando tinha as costas quentes por uma trupe de dez ou vinte gandulos do mesmo jaez, armados de moca e colher de pau. Uns heróis! O sadismo do "Tocha" tinha uma vinculação cromossomática: o pai, por acaso meu professor na 2ª classe, era uma besta sádica como o crio: punha-se em bicos de pés em cima do estrado para corrigir mais dolorosamente os pequenos energúmenos, os díscolos de metro e dez de altura, vinte e poucos quilos de peso, 7 a 8 anos de idade que nós éramos. Eu, que era muito bom aluno e só medianamente traquina, não me lembro de um dia em que o fideputa ainda por cima membro da União Nacional, não me tenha enchido a marmita. Aproveito a ocasião para, se é que ainda não espichou, daqui lhe desejar uma morte pouco santa e muito lenta.
O "Tocha", os "tochas", eram partícula indistinguível do que era e é a direita, por mais refinamento que os seus próceres ponham na escolha da gravata. Combater a obtusidade dessa gente era para nós, os de fora do rebanho a que por convenção se chamava Movimento Estudantil, tão importante como a grande luta contra o cinzentismo fascista. E de tal modo se lutou que, ao contrário do que corre, quando o 25 de Abril veio, a praxe com a sua bruteza militante já só era uma recordação.
Quem me havia de dizer que passados anos a avantesma havia de crescer e multiplicar-se em inúmeras fotocópias desse "Tocha" a quem um dia um colega, reza a lenda, cuspiu na tromba em plena Baixa... Pior: que uma tradição (?) bronca que só a Coimbra dizia respeito havia de transbordar em tons tão ou mais brutais e ainda mais pirosos, mais falhos de imaginação e de gosto que o modelo original, para tudo quanto é Universidade, Instituto, Escola superior: humilhações, agressões, violências impunes à mistura com "benção das pastas", "garraiada", "cortejo" e outras pimbalhadas do estilo.
O labéu, claro, não é extensivo a todos os estudantes, sequer à sua maioria. O praxista é invariavelmente um sujeito frustrado, crasso, vingativo, (quiçá vítima obtusa e rosnante de alheias e anteriores vinganças...) que faz pagar aos outros as suas insuficiências da única forma que sabe e em direcção ao único objectivo que é capaz de discernir, a única catarse capaz de lhe purgar a bílis goliardesca: a vingança com exercício gratuito da violência.
O pior é que há vítimas desta xaropada sinistra: estudantes traumatizados física e psicologicamente, estudantes incapazes de se concentrarem no trabalho, estudantes que reprovam, estudantes desviados da defesa dos seus interesses como meros cidadãos, sempre por via destes himmlers de comédia suburbana.
Por mim, contra a ilegítima barbárie da "praxis", se não respondem os tribunais, as leis ou as autoridades académicas, ergam-se as vítimas e usem da violência legítima no combate à violência não convocada.
Luís Nogueira
Para si...
Porque
Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,
Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios
Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,
Por que não me libertas do teu jugo,
Por que não me convertes em rochedo,
Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,
Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer?
Carlos Drummond de Andrade
7 de maio de 2010
a morte é um relâmpago suspenso sobre o coração
chega dum frémito crepuscular da memória
assim é o branco do seu retrato
calcinado coral...os olhos de escamas entumescidas
o osso enterrado no rosto...o zinabre das mãos
os pés tentaculares semelhantes aos enormes polvos
dos fantásticos manuais de zoologia
dormirei na vegetação fosforosa das águas
todas estas horas em que te afastas de mim
não te esqueças...escreve sempre
para que os dias se prolonguem
onde teu corpo é precioso alimento do meu
suspenso na altura tenebrosa das gáveas...viajo
para viver onde os sinais de vida não magoem
e os pássaros sejam pressentimentos de felicidade
flutuando onde se derrama o nocturno plâncton
pela boca luminosa das galáxias
e da nossa passagem permanecerá
o deslumbrante rumor dos fogos sobre o mar
Al Berto
5 de maio de 2010
Gayatry Spivak
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinicius de Moraes
(a Carlos Teófilo e a Mariana Morais)
Estão convencidos de que sabem fazê-la, de tal modo ela parece simples, e muitas vezes não lhe dão a devida importância. É preciso que coza entre quinze e vinte minutos e não durante duas horas – todas as mulheres francesas deixam cozer demasiado os legumes e as sopas. Mais vale deitar os alhos porros na panela quando as batatas começam a ferver: a sopa fica com um tom esverdeado e ganha um aroma mais vivo. Alem disso é preciso dosear bem os alhos porros: dois alhos porros médios são suficientes para um quilo de batatas. Nos restaurantes esta sopa nunca fica em condições: fica sempre cozida demais, demasiado “retardada”, triste, morna, e acaba por incluir-se na lista comum das sopas de legumes.
Não, devemos querer fazê-la com cuidado, evitar esquecermo-nos dela ao lume, para que não perca o sabor. É servida sem nada , ou com manteiga ou natas frescas. Também podemos juntar-lhe uns pedacinhos de pão torrado no momento de servi-la: dar-lhe-emos então um outro nome ou inventaremos um qualquer – deste modo as crianças comê-la-ão com mais vontade que se lhe dermos o nome ridículo de sopa de alhos porros com batatas.
É preciso tempo, são precisos anos para reencontrarmos o sabor desta sopa, imposta às crianças sob diversos pretextos ( a sopa faz crescer, faz os meninos bonitos, etc.). Não há nada na cozinha francesa que se possa igualar à simplicidade e à necessidade da sopa de alhos porros. Deve ter sido inventada numa região ocidental, numa noite de Inverno, por uma mulher ainda jovem, pertencendo à burguesia local, que, nessa noite, sentiu aversão aos molhos gordos – e a outras coisas mais, sem dúvida – mas sabia-o ela? O organismo absorve esta sopa com satisfação. Digamo-lo sem ambiguidades: não tem a suculência do toucinho, não é sopa para alimentar ou aquecer, não é sopa magra para refrescar, o corpo sorve-a em grandes tragos, purifica-se, depura-se, embebendo os músculos nesta verdura primitiva. O seu aroma espalha-se nas casas muito rapidamente, é muito activo, vulgar como a comida do pobre, o trabalho das mulheres, o vomitado dos recém-nascidos. Pode não nos apetecer fazer nada e depois, fazer isso, sim, fazer essa sopa: entre estas duas vontades, uma margem muito estreita, sempre a mesma – o suicídio.
Marguerite Duras - Outside – notas à margem. Lisboa, Difel, 1976. [Trad. de Maria Filomena Duarte
Navegar
A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade.
Substitui a Inteligência à Energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.
Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.
Bernardo Soares - Livro do Desassossego
2 de maio de 2010
Dia da Mãe.... Obrigado.
Escuta, sorrindo,
a morte que bate
de leve em seu corpo
com ávidos, doces
punhos da infância;
com beijos que vão
enchendo seu rosto
de tempo e ternura;
e alimenta, secreta,
a chama tranquila
que em seu ser ilumina
o mistério da vida.
Vítor Matos e Sá
Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quando assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
Jorge de Sena (26.8.1956)