12 de maio de 2013


Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras...

L. do D.
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras (...)
Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minha(s).
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne não é
espiritual mas é espiritualidade (És a mulher anterior à Queda) […]
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem (...) têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula... Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto (...) corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia de origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol, possuídos em ti!
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite-Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiarae o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja pó? Janela no teu quarto que importa que eu seja espaço? Hora (...) na tua clepsidra que importa que eu passe se por ser teu ficarei, que eu morra se por ser teu não morrer, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, seguidora [?] de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua (...) me adormeça, que o teu mero ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgo-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da guarda dos abandonados, Paisagem humana — irreal [?] de triste e eterna Perfeição.
s.d.

1 de julho de 2010

(Para Elis, com Salvador Dali, A Persistência da Memória)

Exorcismo

Amor que desce, amor que nem procura
de um a ser mundo o sopro repetido;
amor em quem não vive o quanto dura,
no morto antes de tempo, o não vivido;


amor, a quem não resta a fonte obscura
daqueles cujo peso foi perdido;
amor que não conhece mais ternura
além da que não quis sangue vertido:


(Anjo que passas no desdém da terra,
que terra não existe em tuas penas?
Que Sol, de iluminá-las tão serenas,
se perderá das órbitas que encerra?)


amor vidente que o olhar tritura;
amor — saudade pura sem sentido.

Jorge de Sena

13 de junho de 2010

Ontem no Brasil comemorou-se o Dia dos Apaixonados


O Beijo - Klimt


A Noite Passada

A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu

pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"

Sérgio Godinho

PARA OS MEUS ALUNOS

Após tantos anos a ver-vos chegar
e a deixar-vos partir
alheios ou inquietos quanto
ao parentesco das ideias e dos actos
o direito às perguntas e a fonte
das perguntas,
gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome,
saber se estive, perto ou longe,
em vossas dúvidas. É sempre
uma questão mútua de ser.
Uma presença e não
um resultado.

Mas nem sempre soubestes que crescíamos
entre ódios, fanatismos, cobardias,
com olhos vendados pelo conforto
e o medo, com ter-se ou não ter-se
vantagens, aplausos, soluções privadas.
E como foi possível ter razão
sem ter as circunstâncias.

Agora os vossos rostos passam, firmes,
entre visão e facto, entre o amor
e a chegada de todos ao amor.
Mas também morro mais depressa agora.


Por isso gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome. E agradecer-vos a herança
da alegria. E dizer uma vez mais que é sempre
uma questão mútua de ser. Uma presença
e não um resultado.

E os vossos rostos todos
hão-de ajudar-me a envelhecer
sem angústia ou vergonha
e a estar convosco na verdade
e a buscá-la juntos e a cumpri-la.

Vítor Matos e Sá

6 de junho de 2010


Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.

A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as saias do pensamento, e vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida.

E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de consciência em que passei a viver o que sentia, tornaram-me mais quotidiana, mais epidémica, mais titilante a maneira como sentia.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego

31 de maio de 2010

Nu Accroupi - Picasso (1954)

É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia a dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso

António Ramos Rosa

26 de maio de 2010


Ainda à Memória de Luiz Pinto, meu pai.

25 de maio de 2010



Amor...ou coisa assim


Espera-me um pouco onde não chova,
vou morrer mas tenho tempo, espera-me
nem que seja por delicadeza ou amor
ou coisa assim.

Já fui ver o mar onde a terra começa a ser céu,
já alimentei as aves e os peixes e a nobreza dos gatos,
já trabalhei duro e fundo, já andei no mundo,
agora já não.

Tem paciência comigo, por favor.
Às vezes entristeço como respiro, vou ver as pessoas
e como elas sou pouca gente parda e parada
no Inverno portátil do coração.

Eu tenho uma vocação de ti por natureza,
ainda não tinhas nascido já eu te pertencia,
como às pedras pertenço e à poalha azul do ar,
quando o Verão nos perdoa a submissão.

As coisas principais estão se calhar nos gestos,
não nos livros, não sei, tento saber mas desconhecer
é se calhar a vera missão do coração,
aquele que pensa além do corpo, ante o mar

e a segunda-feira,
dia em que espero que me esperes.

Daniel Abrunheiro

23 de maio de 2010


Partida

Todo o espaço é uma linha no centro do átomo
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão.

O horizonte, que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro café,
em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de Inverno.

E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio.

Então, o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça.

Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que porto?

E que nos espera no regresso ao lugar
de onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?

Nuno Júdice

Amor na Infância (à memória de Luiz Pinto, meu pai).

22 de maio de 2010



O Corpo e os Corpos

O teu corpo. O meu corpo. E em vez dos corpos
que somados seriam nossos corpos
implantam-se no espaço novos corpos
ora mais ora menos que dois corpos.

Que escorpião de súbito estes corpos
quando um espelho reflecte os nossos corpos
e num só corpo feitos os dois corpos
ao mesmo tempo somos quatro corpos.

Não indagues agora se o meu corpo
se contenta só corpo no teu corpo
ou se busca atingir todos os corpos
que no fundo residem num só corpo.

Mas indaga sem pausa além do corpo
o finito infinito destes corpos.

David Mourão-Ferreira (1973)

20 de maio de 2010

Demanda

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny de Vasconcelos

17 de maio de 2010


Carta a Ângela

Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e de sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!

Carlos de Oliveira

13 de maio de 2010

A Pátria a PB

Vale muito a pena ir lendo os livros anteriores a tudo isto.
Isto: esta gente.
Aprender a língua de cá e as outras que por aí andam - vale a pena.
Sair, ir ver o mar, dar uma volta boa pelas cidades outonais que restam, consultar a Primavera possível da luz.
Criar os filhos à imagem e semelhança deles mesmos.
Saber algumas coisas, o porquê dos nomes das ruas, os tipos de árvores que por aqui se dão melhor, guardar os rios da fobia e da avidez suinícola.
Ser eólico, cada um por si a favor do outro.
Estimar o velho que se vê passar aturdido pela pressa do Tempo.
E devolver os cornos a quem no-los põe, em democracia.

Também vale a pena ter pena da pobre gente.
Dessa que não vai ao teatro saber o que fazem as pessoas-personagens.
Dessa que é pobre de bmw por todo o lado.
Dessa que, coitada, nos quer em outra ortografia, outro desespero, outra nova oportunidade perdida.
Vale muito a pena sabermo-la irremediável, triste, bacocazita, suicida defecadora de giletes.

Gosto do nosso descalabro pátrio.
Diverte-me - e é que já vou estando em idade de me não importar doentiamente com a saúde.
Ontem à noite, até interrompi a leitura da poesia de José do Carmo Francisco e de Luís F. Adriano Carlos para ver aquele menino-ministro a fazer aquilo com os dedos na Assembleia "abúlica", como lhe chamou o poeta João Apolinário.

Tenho medo de que não valha muito a pena saber o bom e o mau das coisas.
Sei que vale, mas receio que se não dê valor a saber.
Saber o bom e o mau, o que é uma igreja bem iluminada, um bairro bem ordenado e com árvores e assim.
Conhecer para além do preço das bananas, distinguir a colonização da Nova França de uma caixa de sapatos vazia.
Conhecer que é mais grave a pianista Maria João Pires renunciar à cidadania portuguesa do que as eleições do Benfica.

Também seria bom que nos não pusessem tanto os cornos.

Não espero já que nas escolas a juventude identifique o retrato do senhor Alexandre Herculano.
Espero tão-só que as minhas filhas sejam felizes todos os dias, mesmo quando o dia não for feliz, mesmo quando, sozinhas e por si mesmas, descubram a fundamental infelicidade do País em que nasceram.

Gosto das minhas filhas - como toda a gente gosta dos filhos de que foi capaz.
Não gosto do brasil-ao-contrário da língua falada nas retretes televisivas.
Quase me ri, quando vi a Bethânia com o Marco Paulo cantando compungidamente em Fátima.
Quase já não tenho tempo senão para ser sincero.

Não tem importância que o Joaquim de Almeida, coitado, ganhe a vida a fazer de Nicolau Breyner em Hollywood.
Importância nenhuma.
Nem que o País quase lacrimeje de orgulho a ver aquele rapaz do nariz chamado João Garcia a subir montanhas em vez de traballhar qualquer coisita para o PNB.
Estas coisas fazem parte, elas existem com o mesmo direito natural à estupidez que nos subjaz a todos.
É como chamarem "escritor" ao Peixoto, coitado.
É como delirar com a puerilidade do Mia Couto, coitado.
É como fingir que o papão nosso de cada dia não há - e que se chama Imbecilidade, o papão.

Não, não tem importância.
Por mim, tenho muita pena de não ser o Prévert.
Eu gostaria muito de ser o Prévert: de já ter morrido, de ter escrito aqueles poemas que faz bem ler com um sorriso cúmplice nos beiços.
Cagar e andar, naturalmente, para o Torga, para o Eugénio, para o Ramos Rosa, para a seita toda que não seja Carlos de Oliveira, António Osório, Ruy Belo, Camões.

Aprender a mudar os fusíveis, ser útil aos vizinhos, amar nos animais a memória profunda do nascimento mais inocente.
Matar as moscas à palmada para poucar nos clorofluorcarbonetos que dão cabo do ozono.
Perdoar o catolicismo ao Graham Greene, ir a Peniche adorar a Nau dos Corvos, ler a senhora Rodoreda e recomendá-la às pessoas que desligam a televisão quando nos convidam para jantar.

O senhor Manuel Pinho já não faz mal nenhum.
Pensando bem, nunca fez, coitado.
Ele é só aquilo, coitado, ele se calhar gosta da mulher e da nossa Pátria.
Se calhar, ele não saberia escolher entre Paul Celan e a Júlia Pinheiro.
Ele, se calhar, gosta da Mariza e da Dulce Pontes e assim.
Ele, se calhar, preferiria - como todos nós, homens - ter nascido Richard Gere e não Manuel Pinho: ou até, por baixo, Joaquim de Almeida, Manuel Pinho é que nunca
mais.

O que me fascina nisto é ter em casa só para mim a edição da Ulisseia de "Bosque Proibido", sim, que o antropólogo Mircea Eliade também foi romancista.
Tendo a edição da Ulisseia de "Bosque Proibido", que é que me interessa que um ministro faça corninhos digitais na Assembleia da Abúlica?

O que me fascina nisto é fazer um quase poema quase pátrio sem falar no Chefe, no menino-de-ouro, no Filho que é Pai à direita do Espírito Santo e
dos outros bancos todos.

Nenhum de nós pode nem deve, assim de repente, chegar às aldeias e dizer às mães que telefonam para as rádios locais que na TSF se fala à americana com hãs no intervalo das sílabas para a informação ser mais, precisamente, americana.
Nenhum de nós pode nem deve, assim de repente, chegar às aldeias e dizer às mães que o ensino técnico-profissional pode produzir gouchas apresentadoras, por assim dizer, significando aqui "gouchas" como aportuguesamento de "esquerdas" a partir do francês "gauches".

Nós temos todos é de ser felizes sempre que possível.
Ele ainda há hipóteses.
Uma delas é aproveitar o sol e a chuva e ainda respirarmos e termos sido amados a ponto de amar sabermos.
De modo que Angola não tem importância, o avião presidencial, a filha presidencial, os diamantes, a conversão católica da senhora Maria Barroso, os saiotes melífluos do sacerdote Melícias, a coluna cor-de-rosa do Carlos Castro no "Correio da Manhã", o cinzentismo obrigatório do "Diário de Notícias", o esquerdismo reformado da "Visão-ex-O-Jornal", o mcdonaldismo alegadamente informativo do "Expresso" de trazer nas manhãs-de-saco dos sábados-de-plástico, a Santa TVI analfabetizando militantemente os cafés rurais da Nação - nem a alegada Educação Nacional.

A Educação Nacional, senhores e senhoras: isto dos exames de cacaracacá, isto tão aborrecido de ensinar & aprender a ler-escrever-contar-e-pensar, isto dos professores, coitados, isto das peregrinações-a-Lurdes, coitados.

A Saúde Nacional, senhoras e senhores: as prenhes a desprenhar-se à pressa nas ambulâncias, os centros de saúde infestados de médicos contrariados e de enfermeiras com a menopausa aos coices e de administrativas que jogam ao solitário e ao imeile dos sáites de encontros amorosos com gajos brasileiros e de administrativos que jogam ao solitário e ao imeile dos sáites de encontros amorosos com gajas brasileiras.

A Justiça Nacional, meninos e meninas, cheia de desprovedores por tudo quanto é canto, e de moitas-flores conselheiros por tudo quanto é praça-da-alegria e assim, e de desembargadores embargados de lágrimas de há-ali-gueitór, e de valentins- e-ou-dias-loureiros.

O Bairro Social Nacional, meninas e meninos, carregadinhos até aos dentes dos restos escoriais do colonialismo, atravancadinhos de rendimentós mínimos de rintintinserção-social e outras merdas às cores.

Se me dessem a escolher entre a Pátria e o Descalabro, eu não escolheria o que não pode ser separado.
Se me dessem a escolher entre dormir sexualmente com uma gaja das boas e ter o nº 117 da Colecção Vampiro, eu escolheria o nº 117 da Colecção Vampiro porque a Pátria já não tem gajas boas para dormir sexualmente, só tem descasadas da 24 de Julho e brasileiras dos restantes 364 dias.

Ao contrário, portanto, do que o senhor Manuel Pinho possa pensar, o senhor Manuel Pinho não tem importância, no que, aliás, a Pátria o imita tremendamente.

Quando posso, leio o suplemento "Babélia" do "El País", claro.
Quando posso, vou à Figueira da Foz comer sardinhas assadas e rever aquele amarelo das casas que é único no meu mundo.
Quando posso, vou a Coimbra entristecer deliciosamente entre o Botânico e a Casa do Sal, permeável à nostalgia dos comboios, à graça pobrezinha do Choupal, à humidade da Adelino Veiga, à pederastia gerontológica da Estação Nova, às porcarias de papelão que os ciganos deixam pela borda do rio, ao perfume a lixívia das divorciadas de Celas e dos Olivais, à devastação da ex-Zona ex-Industrial da minha Pedrulha.

Quando posso, sou português sem dizer nada a ninguém.
Só tenho pena é de já não beber.
Quando bebia, era mais fácil indignar-me depressa e sem consequências.
Quando bebia, também andava por aí a fazer corninhos com os dedos.
Quando bebia, também amava muito a Pátria, mesmo com o Scolari.

Agora, dou-me a Préverts e a Eliades.
Percebo a necessidade de Deus em Graham Greene.
E vou à minha vida em português, certo de ter filhas lindas e portuguesas,
mas lindas.

E um dia vamos todos ter duas datas a seguir ao nome
e nenhuns cornos,
finalmente.

Daniel Abrunheiro (um génio)

9 de maio de 2010

Está aí a Queima!



A Ponte dos Asnos


Nos meus tempos nessa alma mater dolorosa que era e talvez ainda seja a Universidade de Coimbra havia por lá uma coisa chamada "praxe académica". Creio que era no país a única Universidade que conservava e justificava, com base em míticos foros a permanência de semelhante corcunda. A religião praxística tinha a sua "Revelação" imortalizada numa calhamaço chamado Palito Métrico que começava, cito de memória: "Filius ille puta/quod primo versus fecit"... Era a bíblia dos débeis matriculados; nela se consignava o grande dogma, a tautologia "dura praxis sed praxis", espécie de "pons asinorum" (ponte dos asnos), ilógica justificação do injustificável, tal como essa em que se inspira a "dura lex sed lex", aforismo redondo que há mais de dois mil anos se inventou para aporrinhar o juízo e o coiro de quem lhe cai nas unhas da merceeira cega, a justiça, perdão, A JUSTIÇA.

A praxe consistia em humilhar, ofender, rapar e agredir (sim, agredir...) o bicho, o caloiro, o pastrano, o semiputo e afins castas praxísticas, pelo simples motivo de aquelas mentes tíbias terem fabricado, única elocubração de que eram capazes, bichos, caloiros, pastranos e semiputos. A tal praxe era regulada, vigiada e policiada por uns sujeitos bisonhos de incompleto equipamento mental a quem os antipraxistas, como eu, chamavam "tricanos". A palavra, que ouvi pela primeira vez ao Zé Afonso, correspondia à parte macho da mamuda colareja, chaile-traçado & chinela-de-verniz, a tricana do mercado do Calhabé por quem o tricano nutria aquele permanente e jamais concretizado eretismo que era tudo quanto, na sua condição de resfolgante bode de cobrição concebia como erotismo.

A filosofia (?) do praxista era (é) simplista, linear, toda de direita: ele e seus irmãos de matricula eram os "doutores", como de resto qualquer merdas que chegasse à Estação Nova já ajaezado de capa e batina. Ao habitante da cidade, que no entendimento do goliardo não era dotado do átomo de bestunto necessário para escamar o "canudo", chamava ele "futrica", tinha-o por ilota daquela Lusa Antenas onde a Pátria deficitária ia buscar as doutorais luminárias que pontificavam, como hoje, nos púlpitos de onde se governa a Lusitânia.

Quando por lá andei o grande activista da praxe era um tal Diamantino, por alcunha "O Tocha", graveto a rondar o metro e cinquenta, pouco mais, fracachichas mas muito teso quando tinha as costas quentes por uma trupe de dez ou vinte gandulos do mesmo jaez, armados de moca e colher de pau. Uns heróis! O sadismo do "Tocha" tinha uma vinculação cromossomática: o pai, por acaso meu professor na 2ª classe, era uma besta sádica como o crio: punha-se em bicos de pés em cima do estrado para corrigir mais dolorosamente os pequenos energúmenos, os díscolos de metro e dez de altura, vinte e poucos quilos de peso, 7 a 8 anos de idade que nós éramos. Eu, que era muito bom aluno e só medianamente traquina, não me lembro de um dia em que o fideputa ainda por cima membro da União Nacional, não me tenha enchido a marmita. Aproveito a ocasião para, se é que ainda não espichou, daqui lhe desejar uma morte pouco santa e muito lenta.

O "Tocha", os "tochas", eram partícula indistinguível do que era e é a direita, por mais refinamento que os seus próceres ponham na escolha da gravata. Combater a obtusidade dessa gente era para nós, os de fora do rebanho a que por convenção se chamava Movimento Estudantil, tão importante como a grande luta contra o cinzentismo fascista. E de tal modo se lutou que, ao contrário do que corre, quando o 25 de Abril veio, a praxe com a sua bruteza militante já só era uma recordação.

Quem me havia de dizer que passados anos a avantesma havia de crescer e multiplicar-se em inúmeras fotocópias desse "Tocha" a quem um dia um colega, reza a lenda, cuspiu na tromba em plena Baixa... Pior: que uma tradição (?) bronca que só a Coimbra dizia respeito havia de transbordar em tons tão ou mais brutais e ainda mais pirosos, mais falhos de imaginação e de gosto que o modelo original, para tudo quanto é Universidade, Instituto, Escola superior: humilhações, agressões, violências impunes à mistura com "benção das pastas", "garraiada", "cortejo" e outras pimbalhadas do estilo.

O labéu, claro, não é extensivo a todos os estudantes, sequer à sua maioria. O praxista é invariavelmente um sujeito frustrado, crasso, vingativo, (quiçá vítima obtusa e rosnante de alheias e anteriores vinganças...) que faz pagar aos outros as suas insuficiências da única forma que sabe e em direcção ao único objectivo que é capaz de discernir, a única catarse capaz de lhe purgar a bílis goliardesca: a vingança com exercício gratuito da violência.

O pior é que há vítimas desta xaropada sinistra: estudantes traumatizados física e psicologicamente, estudantes incapazes de se concentrarem no trabalho, estudantes que reprovam, estudantes desviados da defesa dos seus interesses como meros cidadãos, sempre por via destes himmlers de comédia suburbana.

Por mim, contra a ilegítima barbárie da "praxis", se não respondem os tribunais, as leis ou as autoridades académicas, ergam-se as vítimas e usem da violência legítima no combate à violência não convocada.

Luís Nogueira


Parabéns aos benfiquistas! (não sou ressabiado)

Para si...


Porque

Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,
Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios
Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,
Por que não me libertas do teu jugo,
Por que não me convertes em rochedo,
Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,
Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade

7 de maio de 2010


a morte é um relâmpago suspenso sobre o coração
chega dum frémito crepuscular da memória
assim é o branco do seu retrato
calcinado coral...os olhos de escamas entumescidas
o osso enterrado no rosto...o zinabre das mãos
os pés tentaculares semelhantes aos enormes polvos
dos fantásticos manuais de zoologia

dormirei na vegetação fosforosa das águas

todas estas horas em que te afastas de mim
não te esqueças...escreve sempre
para que os dias se prolonguem
onde teu corpo é precioso alimento do meu

suspenso na altura tenebrosa das gáveas...viajo
para viver onde os sinais de vida não magoem
e os pássaros sejam pressentimentos de felicidade
flutuando onde se derrama o nocturno plâncton
pela boca luminosa das galáxias
e da nossa passagem permanecerá
o deslumbrante rumor dos fogos sobre o mar

Al Berto

5 de maio de 2010

Gayatry Spivak

Às excelentes lembranças dos seminários de Doutoramento do Professor Doutor Osvaldo Manuel Silvestre, à investigadora Andreia Ferreira, pelas intermináveis discussões que me proporcionou, no contacto com o seu brilhantismo intelectual, a Mariana Morais, um dia em Columbia, como Avalon Foundation Professor, or anywhere...

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes


Vichyssoise
(a Carlos Teófilo e a Mariana Morais)

Estão convencidos de que sabem fazê-la, de tal modo ela parece simples, e muitas vezes não lhe dão a devida importância. É preciso que coza entre quinze e vinte minutos e não durante duas horas – todas as mulheres francesas deixam cozer demasiado os legumes e as sopas. Mais vale deitar os alhos porros na panela quando as batatas começam a ferver: a sopa fica com um tom esverdeado e ganha um aroma mais vivo. Alem disso é preciso dosear bem os alhos porros: dois alhos porros médios são suficientes para um quilo de batatas. Nos restaurantes esta sopa nunca fica em condições: fica sempre cozida demais, demasiado “retardada”, triste, morna, e acaba por incluir-se na lista comum das sopas de legumes.

Não, devemos querer fazê-la com cuidado, evitar esquecermo-nos dela ao lume, para que não perca o sabor. É servida sem nada , ou com manteiga ou natas frescas. Também podemos juntar-lhe uns pedacinhos de pão torrado no momento de servi-la: dar-lhe-emos então um outro nome ou inventaremos um qualquer – deste modo as crianças comê-la-ão com mais vontade que se lhe dermos o nome ridículo de sopa de alhos porros com batatas.

É preciso tempo, são precisos anos para reencontrarmos o sabor desta sopa, imposta às crianças sob diversos pretextos ( a sopa faz crescer, faz os meninos bonitos, etc.). Não há nada na cozinha francesa que se possa igualar à simplicidade e à necessidade da sopa de alhos porros. Deve ter sido inventada numa região ocidental, numa noite de Inverno, por uma mulher ainda jovem, pertencendo à burguesia local, que, nessa noite, sentiu aversão aos molhos gordos – e a outras coisas mais, sem dúvida – mas sabia-o ela? O organismo absorve esta sopa com satisfação. Digamo-lo sem ambiguidades: não tem a suculência do toucinho, não é sopa para alimentar ou aquecer, não é sopa magra para refrescar, o corpo sorve-a em grandes tragos, purifica-se, depura-se, embebendo os músculos nesta verdura primitiva. O seu aroma espalha-se nas casas muito rapidamente, é muito activo, vulgar como a comida do pobre, o trabalho das mulheres, o vomitado dos recém-nascidos. Pode não nos apetecer fazer nada e depois, fazer isso, sim, fazer essa sopa: entre estas duas vontades, uma margem muito estreita, sempre a mesma – o suicídio.

Marguerite Duras - Outside – notas à margem. Lisboa, Difel, 1976. [Trad. de Maria Filomena Duarte

Navegar


A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade.

Substitui a Inteligência à Energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.

Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego

2 de maio de 2010

Dia da Mãe.... Obrigado.

Maternidade

Escuta, sorrindo,
a morte que bate
de leve em seu corpo
com ávidos, doces
punhos da infância;
com beijos que vão
enchendo seu rosto
de tempo e ternura;
e alimenta, secreta,
a chama tranquila
que em seu ser ilumina
o mistério da vida.


Vítor Matos e Sá

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quando assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.


Jorge de Sena (
26.8.1956)